Candidatos do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2024 postaram nas redes sociais que “colaram” na avaliação: imprimiram e levaram ao local de prova um modelo pré-pronto de redação, escondido, para copiá-lo na hora decisiva. Eles dão a entender que não foram flagrados por nenhum fiscal no domingo (4): “dica de ouro, meninas!”, escreveu uma das jovens, na legenda.
Segundo o edital de 2024, “utilizar ou tentar utilizar meio fraudulento em benefício próprio ou de terceiros em qualquer etapa do Exame” leva à eliminação do estudante. Há relatos de que, no dia da aplicação do Enem, cartazes foram espalhados nas escolas com o aviso de que “fraudar a prova é um crime federal”. Ainda assim, alunos desrespeitaram a regra e ainda publicaram na internet uma evidência das trapaças.
O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) informou que os candidatos ainda podem ser eliminados, mesmo não tendo sido flagrados no momento da prova. “O edital do Enem prevê que os participantes do exame podem ser eliminados ‘a qualquer momento’ caso utilizem meios fraudulentos em benefício próprio. Portanto, estudantes identificados descumprindo as regras serão desclassificados”, disse o Inep.
Procurados pelo g1, os candidatos não se manifestaram.
➡️O que são esses modelos de redação? São textos distribuídos gratuitamente na internet ou vendidos por até R$ 50. Em tese, eles serviriam para qualquer tema: bastaria que o candidato preenchesse lacunas com o assunto cobrado naquela edição da prova. Os repertórios culturais, a introdução e o argumentos são genéricos, justamente para se encaixarem tanto em uma dissertação sobre meio ambiente quanto em uma sobre tecnologias. Essa técnica, que pode ser uma cilada, coloca em xeque os atuais critérios de correção do Enem (leia mais abaixo).
🖥️Os posts continuam no ar? Nem todos. Depois que um dos “prints” da “confissão” viralizou no X [o g1 optou por não reproduzi-lo aqui], a candidata apagou a foto em que mostrava sua estratégia para “colar”.
No entanto, em outro vídeo postado pela mesma estudante (e que continuava disponível na manhã de terça-feira, 6), é possível ler o rascunho da dissertação “oficial” entregue por ela — era exatamente igual à “cola”, só que com as lacunas preenchidas com o tema da edição: “Desafios para valorizar a herança africana na cultura brasileira” (foto no topo da reportagem).
Como são esses modelos de redação?
Veja um exemplo de introdução genérica vendida na internet:
- Já ensinava Sócrates: “Os erros são consequência da ignorância humana”. Logo, é válido analisar as causas da ___invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher___ no Brasil.
- Já ensinava Sócrates: “Os erros são consequência da ignorância humana”. Logo, é válido analisar as causas da ___ desvalorização da herança africana” ___ no Brasil.
- Já ensinava Sócrates: “Os erros são consequência da ignorância humana”. Logo, é válido analisar as causas da ___desvalorização das comunidades e povos tradicionais___ do Brasil.
✏️Do ponto de vista pedagógico, é um desastre, afirmam especialistas ouvidos pelo g1. Normalmente, os alunos:
- não desenvolvem a habilidade de argumentação e de articulação de ideias;
- chegam à faculdade sem conseguir escrever um artigo simples;
- prestam outros vestibulares, que exigem redações diferentes (como o da Unicamp ou da Fuvest), e ficam “travados”;
- têm dificuldade de adaptar os modelos, dependendo do tema, e acabam produzindo um texto sem coerência.
📢Por outro lado, os atuais critérios de correção do Enem valorizam mais o formato da dissertação do que a profundidade dos argumentos, na opinião de professores. Isso acaba incentivando os candidatos a comprar “fórmulas prontas” ou a procurá-las gratuitamente em e-books e nas redes sociais (e ainda usar “colas”, como nos casos relatados mais acima).
Além disso, não há, nas regras do Inep, uma penalização prevista caso dois ou mais estudantes entreguem textos basicamente iguais.
➡️Ao g1, o Inep afirma que “o critério ‘criatividade’ não é objeto de avaliação do exame, pois não faz parte do construto julgado na prova de redação”. Diz também que os textos dissertativos “possuem um rol limitado de características formais. Eventualmente, isso pode motivar atividades didáticas que visem ao domínio de tais características”.
📈Quais os riscos de usar os modelos?
1- O tema pode não se encaixar.
Maria Eduarda Dal Pozzo, de Guarapuava (PR), decorou um desses modelos completos para o Enem do ano passado… e ficou decepcionada com a sua nota: 680.
“Levei um baque. Não adiantou nada ter usado essa estratégia, porque faltava a argumentação. O tema não se encaixava. Para este ano, preferi fazer aulas de redação e estudar a estrutura do Enem, sem decorar nada. Já melhorei muito e consegui criar um repertório”, conta a jovem.
Na prova, é esperado que o aluno demonstre referências socioculturais e cite, por exemplo, filósofos, filmes, livros, séries ou documentários ao longo de seu texto. E nem sempre o modelo pré-pronto trará exemplos que tenham alguma conexão com o tema daquele ano.
“O candidato acaba usando Platão para falar de violência contra a mulher ou de inserção de surdos na sociedade. Não adianta: precisa ter a ver com o assunto cobrado. Se não for algo pertinente, vai haver penalização na competência 2 [que avalia a mobilização do repertório para a construção da argumentação]”, afirma Renato Fonseca, professor de redação do Cursinho da Poli (SP).
Outro teste, com base em mais um modelo pré-pronto:
“De acordo com Nicolau Maquiavel, no livro “O Príncipe”, para se manter no poder, o Governo deve operar tendo como objetivo o bem universal. Entretanto, é notório que, no Brasil, ___a democratização do acesso ao cinema no Brasil (tema do Enem 2019) ___ rompe com essa paridade, uma vez que prejudica o avanço social brasileiro e afeta a população no dia a dia.”
Perceba que o aluno que não fizesse os devidos ajustes escreveria, sem querer, que a democratização prejudica o avanço social brasileiro.
➡️Observação: Os próprios temas têm sido mais complexos nos últimos anos — em 2013, os alunos tiveram de escrever sobre os efeitos da Lei Seca; em 2023, sobre os “desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.
“É uma forma de criar um filtro e superar essas fórmulas prontas, para avaliar a competência argumentativa do aluno”, diz Fonseca.
2- O aluno deixa de mostrar seus próprios argumentos e fica “preso” ao que decorou.
No parágrafo citado mais acima, mencionando Maquiavel, é bem possível que o estudante fosse capaz de apresentar uma introdução mais coerente do que a que ele memorizou — ainda mais se considerarmos que o acesso ao cinema é um tema relativamente simples e próximo à realidade dos jovens.
“Nas redações de quem usou modelo, as ideias que ficam no início de cada parágrafo estão desconectadas do restante das ideias. É a principal evidência [de que houve cópia]”, diz Thiago Braga, professor de língua portuguesa do Colégio pH (RJ).
3- O candidato esquece uma parte do que memorizou e fica desestabilizado emocionalmente.
Se os candidatos não se lembrarem do que memorizaram — e convenhamos que não é fácil decorar 30 linhas escritas por outra pessoa —, podem simplesmente “travar”. É preciso dominar a estrutura básica da dissertação e saber, por exemplo, que tipo de conteúdo deve aparecer em cada parágrafo.
Quem redigiu (de verdade) uma redação por mês, ao longo deste semestre, dificilmente esquecerá como fazer uma introdução nos padrões do Enem. A “decoreba” é sempre mais arriscada — a “cola”, mais ainda.
4- O resultado nas redações de outros vestibulares é muito ruim.
Cada processo seletivo tem seus próprios critérios de avaliação. O que serve para o Enem não se encaixa no vestibular da Universidade de São Paulo (USP) ou da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por exemplo.
Se o candidato estudar as estratégias de argumentação, desenvolver seu vocabulário, reforçar o repertório sociocultural e ficar bem informado a respeito do formato de cada prova, conseguirá demonstrar suas habilidades em todas as avaliações.